À conversa com Luciano Berio (por Arno Bornkamp)

A interpretação de obras musicais depende, em grande parte, do texto. É isto uma evidência. É também evidente, na literatura contemporânea, a grande diversidade que existe nos textos (nos detalhes da sua notação) e dos próprios compositores (significado dos sinais, a sua tolerância, etc.). Penso que é bom, na medida do possível, ir ao encontro dos compositores e confrontá-los à interpretação que fazemos da sua obra. Uma tal confrontação faz aprender muitíssimo sobre a motivação do compositor, sobre a precisão a ter na leitura do texto musical, as prioridades a dar à execução, como ao espaço que pode dar-se a outras ideias, etc. Todos estes aspectos podem trazer uma nova luz à visão que temos da partitura. No passado mês de Junho, visitei Luciano Berio, em Itália, que me recebeu no seu estúdio "Tempo Reale", em Florença. Eu tinha, claro está, bem prearada a minha entrevista: tinha uma longa lista de perguntas a colocar-lhe sobre a sa "Sequenza IXb" para saxofone alto solo.

À conversa com Luciano Berio
(por Arno Bornkamp)

tradução de Pedro Leite Teixeira

A interpretação de obras musicais depende, em grande parte, do texto. É isto uma evidência. É também evidente, na literatura contemporânea, a grande diversidade que existe nos textos (nos detalhes da sua notação) e dos próprios compositores (significado dos sinais, a sua tolerância, etc.). Penso que é bom, na medida do possível, ir ao encontro dos compositores e confrontá-los à interpretação que fazemos da sua obra.
Uma tal confrontação faz aprender muitíssimo sobre a motivação do compositor, sobre a precisão a ter na leitura do texto musical, as prioridades a dar à execução, como ao espaço que pode dar-se a outras ideias, etc. Todos estes aspectos podem trazer uma nova luz à visão que temos da partitura.
No passado mês de Junho, visitei Luciano Berio, em Itália, que me recebeu no seu estúdio “Tempo Reale”, em Florença. Eu tinha, claro está, bem prearada a minha entrevista: tinha uma longa lista de perguntas a colocar-lhe sobre a sa “Sequenza IXb” para saxofone alto solo.
Retenho, particularmente, as observações que me fez antes de começar a peça.
Para ele, as dinâmicas constituem um ponto importante. Depois de aumentar a minha sensibilidade ao problema, permitiu-me tocar, sendo notável a sua satisfação. Tive que interromper-me, a mim mesmo, para colocar-lhe algumas questões, por exemplo, sobre o “sempre non vibrato”. Colocou essa nota no início da peça, como reacção a certas “más recordações”. Não colocou, a pesar disso, nenhuma objecção à minha proposição de tocar algumas passagens com um vibrato bem escolhido. Aplaudiu a minha iniciativa!
– Sobre o “timing” das appogiaturas (os grupos), aconselhou-me de não contar muito, a tocá-las com um certo “feeling” (ideia justificada pela nota inicial: “tempo poco instabile”).
– Sobre os multifónicos: mostrei-lhe que as posições indicadas não são correctas. A minha observação surpreendeu-o, mas aceitou, de imediato, a solução que lhe propus (empregar em “1” como dedilhação: 1-2-3-sib-4-6-7-c5 para obter as notas escritas; empregar em “2”: 1-2-3-c4-7-c5 para obter Fá-Ré – notas diferentes da notação [fá-dó]). O mais importante, para Berio, é ter a nota Fá como nota superior do intervalo. “Toda e qualquer solução ao problema deve ter esse aspecto em conta.” *
– As notas repetidas devem ser claramente articuladas, a pesar da velocidade.
– Passagem rápida do fim da página 3 à página 4.
– Na última linha da peça, Berio prefere a tercina com a appogiatura tocada na oitava superior, tal como na versão para clarinete.

Em conclusão, o compositor via a dinâmica e a articulação como parâmetros importantes, e foi (pelo menos durante todo este nosso encontro) mais tolerante relativamente a outras coisas.
Interroguei-o também sobre a sua motivação profunda quanto à composição desta “Sequenza”. Respondeu-me que tinha procurado uma música de jazz, o que quer dizer que, mesmo que esta peça não tenha sido escrita para saxofonistas de jazz, ele desejava obter a articulação particular do jazz (assimilada à sua linguagem e estilo próprios). Esta observação – que me surpreendeu, naquele momento – vê-se justificada através da utilização de “notas fantasma”, de cores particulares de som (“subtone”, por exemplo), de articulações, etc.

Este encontro revelou-se extremamente béfico para mim. A sua atitude tolerante, em particular, é exemplar (comparêmo-la com a de Stockhausen, cuja música deve ser tocada rigorosamente – “In Freundschaft”, por exemplo, ainda que não ele não ignorasse a involuntária fantasia musical do intérprete). No entanto, não deve esquecer-se que, apesar da sua grande tolerância, o texto musical constitui sempre o ponto de partida para a interpretação, especialmente quando o texto é tão rico como o da “Sequenza IXb” de Luciano Berio.

*Um pouco mais tarde, J.-M. Londeix sugeriu-me que cantasse a segunda nota e tocasse a primeira. Parece ser uma boa solução, mesmo que o efeito sonoro seja outro. Poder-se-á, pelo menos, tocar o texto.

Arno Bornkamp é um jovem e brilhante solista holandês, quem, sem medo de envolver-se, com determinação, nos projectos de música contemporânea, cria, para si mesmo, um nome entre projectos de música consistente (escute o seu remarcável disco compacto: GLObE GLO 5032, dedicado às obras de Creston, Fl. Schmitt, P. Hindemith, A. Desenclos, J. Charpentier e E. Denisov).

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